SETOR ELÉTRICO BRASILEIRO EM TRANSIÇÃO - REGULAMENTAÇÃO E MERCADO
Ruderico F. Pimentel
Professor do Programa de Pós-Graduação em Engenharia
de Produção da Universidade Federal Fluminense
RESUMO
Nas
duas últimas décadas, mudanças na organização do setor elétrico se disseminaram
no mundo, a partir de experiências pioneiras no Chile e no Reino Unido. Estas
alterações tiveram em comum a busca da introdução de elementos de concorrência,
em um setor, antes, totalmente regulado e, quando cabível, a transferência da
propriedade das empresas do Estado para o setor privado.
Este
processo alcançou, também, o Brasil, que está passando por um completo
redesenho de sua estrutura institucional. As alterações aqui inicialmente
efetuadas foram parciais e não sofreram o amplo debate que teria sido
necessário. Situação esta que ficou ainda mais em evidência em função da
recente crise no abastecimento. Esforços para o ajuste do modelo setorial estão
em andamento.
Este
trabalho destaca rapidamente algumas das motivações e elementos comuns a essas
transformações a nível mundial, para concentrar-se na discussão da opção entre
regulamentação e mercado, particularmente no que concerne ao setor elétrico
brasileiro.
Ambas
as opções estão sujeitas a falhas, mas o uso parcial do mercado traz incentivos
à eficiência e à inovação, para cujo aproveitamento as “regras do jogo”
necessitam ser suficientemente discutidas e adequadamente reformuladas, em
particular naquilo que se refere à
promoção da expansão do suprimento.
1. Introdução
Na
ultima década, o setor de energia elétrica brasileiro evoluiu de uma atividade
predominantemente estatal para um novo padrão de governança, com uma
participação privada significativa, principalmente no segmento de distribuição,
onde uma grande parte das empresas está, hoje, sob o controle do capital
privado, assim como uma parcela menor do segmento de geração.
Essa
transformação trouxe conseqüências de natureza institucional imediatas e, em
particular, para a discussão dos critérios de estabelecimento dos preços da
eletricidade, questão que, no passado recente, era quase interna à área
governamental, afetando principalmente os conflitos entre interesses estaduais
e federais e a compatibilização das necessidades setoriais com os anseios dos consumidores
em geral. Sempre dentro de um espaço empresarial em que os objetivos eram
diretamente dominados (ou deveriam ser) pelo interesse público.
Problemas
de eficiência gerencial à parte, as cíclicas crises setoriais refletiam os
fortes impactos sobre os preços da eletricidade, provocados pelas políticas de
contenção da inflação, pela necessidade governamental de captação de recursos
externos alavancados pelos grandes projetos e por políticas implícitas de
transferência de renda entre regiões e entre segmentos de consumidores, seja
diretamente, via preços, seja indiretamente, pelo convívio quase que permanente
com situações crônicas de inadimplência.
Não
obstante o interesse de investidores minoritários privados, a gestão das
empresas estatais sempre privilegiou os objetivos de seus controladores e,
portanto, acabava se compondo com as fortes limitações de preços impostas pelo
governo. Nesse cenário, a regulamentação setorial operava apenas dentro dos
limites estreitos deixados pela política econômica de curto prazo. Como os
investimentos seguiam outra lógica que não a da rentabilidade, esta situação,
embora desorganizadora e onerosa, não impedia a expansão do setor.
Como
o mercado descontava este comportamento no valor das ações, os minoritários já
haviam incorporado essas dificuldades em suas expectativas de valor e a difícil
compatibilização de interesses não gerava maiores conflitos. Uma de suas
conseqüências danosas, todavia, era limitar em muito o uso dos mercados como
instrumento de captação de recursos setoriais, ficando restrita a obtenção de
recursos às alternativas de débito, com garantias firmes do governo.
Nos
períodos de crise, como as contas não fechavam, o tesouro nacional acabava
arcando com os prejuízos, em uma ciranda de inadimplências, e, em ultima
análise, os custos finais eram bancados indiscriminadamente e sem transparência
pelos contribuintes em geral.
À
medida que o contexto recessivo dos anos oitenta foi se agravando, com o
controle tarifário exercendo maiores pressões sobre as tarifas, e com o
endividamento público crescendo, este sistema foi ficando cada vez mais difícil
de ser mantido.
Com
a privatização, que veio como resposta ao esgotamento do modelo anterior e aos
anseios por mudanças, este sistema de acomodação às contenções tarifárias se
inviabilizou por completo. Até mesmo
para permitir que as empresas fossem vendidas sem requerer prêmios absurdamente
elevados de risco, teve que ser estabelecido um sistema mínimo que gerasse confiança
no respeito às regras comerciais, apoiado nos contratos de concessão.
Mais
que isso, todo o processo de ampliação da gestão privada é, ele mesmo, parte
integrante de um processo maior de reformulação institucional, onde, a exemplo
de inúmeros outros países, se procura introduzir em sua estruturação novos
fatores, promotores de uma maior eficiência, tanto pela mudança do esquema de
governança, como pela introdução, no que possível, de uma maior exposição das
empresas à concorrência.
Os
novos desenhos institucionais têm se caracterizado pela modificação das antigas
sistemáticas de regulamentação de preços, liberando parcelas para serem
formadas pelo mercado e introduzindo, nas parcelas que permanecem reguladas,
mecanismos de incentivo capazes de fazer com que gestões orientadas pela busca de
resultados partilhem com os consumidores de ganhos oriundos de incrementos de
produtividade que consigam obter.
Com
a privatização, mais do que uma mudança de controle das empresas, se substituiu
grande parte de um sistema estritamente hierárquico de alocação de recursos por
uma alocação dependente dos sinais de mercado.
Havendo,
agora, inúmeras empresas privatizadas, negociadas com base nas expectativas de
fluxos futuros de caixa e na necessidade de que novos investidores se sintam
atraídos a investir na expansão, a questão do preço torna-se muito mais crítica
para a coordenação da alocação dos recursos setoriais,.
Com
a retirada da ação direta do governo, as possibilidades de captação de novos
recursos, tanto via débito quanto via emissão de ações, não mais garantidos
pelo tesouro nacional, vão depender diretamente das perspectivas de
rentabilidade das empresas e de sua imagem no mercado.
No
caso específico brasileiro, com taxas de crescimento do consumo de eletricidade
muito acima dos valores encontrados nos países desenvolvidos, onde se formaram
os principais paradigmas das mudanças setoriais, e com a possibilidade de
desenvolvimento de projetos hidrelétricos de longo tempo de maturação, a
questão dos incentivos adequados aos novos investimentos é ainda mais
essencial.
Umbilicalmente
integrados os movimentos de privatização e de reformulação institucional, fica
claro que, no novo sistema, a eficiência da alocação de recursos setoriais
resultante está diretamente dependente dos critérios de formação de preços e,
também, de um correto tratamento dos mecanismos de promoção da expansão, cuja
lógica econômica muda radicalmente.
No
setor elétrico, como em qualquer outro, não existem obras sem fontes de
recursos que cubram seus custos. No sistema antigo, tinha-se uma maior
flexibilidade para acomodá-los entre consumidores e contribuintes, mas sempre
sem clareza, de forma implícita e deixando espaço para manipulações diversas.
Se
o novo sistema privatizado traz problemas novos, nele a distribuição de custos
e benefícios é realizada em função direta dos preços de mercado de seus insumos
e seus produtos, o que torna muito mais difícil essa acomodação. Onde
necessária, via subsídios diretos ou taxas de juros reduzidas, ela tem que ser
muito mais clara e transparente.
Para
que se possa usufruir destas vantagens, entretanto, necessita-se, ao lado de
preços com sinais econômicos corretos, definir-se com clareza o papel promotor,
complementar, do Estado, sem o qual, diante da natureza dos investimentos,
intensivos em capital e com longo prazo de maturação e de retorno, dificilmente
a expansão se dará na forma adequada.
A
questão das regras setoriais passa a ser muito mais urgente. Como o processo de
transição institucional só foi parcialmente efetivado, inúmeros aspectos das
“novas regras do jogo” estão, ainda, sendo equacionados, sendo que alguns
princípios centrais ainda não foram devidamente firmados nem, talvez,
adequadamente discutidos em espaços representativos mais amplos. Uma escolha
correta é fator determinante de eficiência para o setor.
Não
se trata apenas de tópicos de interesse técnico pontual, mas de questões mais
gerais, com fortes impactos econômicos e sociais. No momento em que este
trabalho está sendo escrito, pesa, em particular, sobre o desenho do novo
modelo, a questão do desabastecimento, reflexo de uma retirada brusca do
Estado, não acompanhada pela imediata criação de instrumentos e condições que
promovessem e viabilizassem os investimentos privados em grandes projetos de
geração, principalmente nos projetos hidrelétricos indispensáveis, pelo menos
até que a disponibilidade de gás natural seja muitas vezes multiplicada.
Não
existe mercado em abstrato e sim espaços concretos de mercado, delimitados
claramente por legislação, normas e instituições. Assim, não se pode imaginar
que a mera disponibilização aos atores privados, de ações antes exercidas pelo Estado no setor elétrico,
possa levar a uma substituição de agentes bem sucedida, sem uma redefinição das
fronteiras e relacionamentos entre as decisões hierárquicas e as de mercado.
Apenas com um correto e delicado balanceamento desses limites é que se poderá
proporcionar as condições adequadas para
um desenvolvimento setorial eficiente.
Face
à complexidade dos problemas envolvidos, marcados pelas especificidades características do sistema brasileiro,
acredito que o processo de aprimoramento institucional esteja requerendo um
amplo debate, que ajude a encontrar as soluções mais adequadas. Sem pretender
aqui ir muito além da apresentação de alguns dos traços mais gerais desse
processo, o presente trabalho procura acrescentar algumas considerações sobre
as dimensões regulada e concorrencial dos critérios de estabelecimento dos
preços da eletricidade e seus impactos sobre a expansão da oferta.
Ele
se vincula e baliza um programa de pesquisa sobre o setor elétrico conduzido no
âmbito da Universidade Federal Fluminense e se apoia, em parte, nos resultados
dos estudos mais detalhados, sobre critérios para a regulamentação de preços,
em Brasil Neto (2001), e sobre a concorrência pelos consumidores livres na fase
de transição, em Araujo (2001), desenvolvidos no período 1999-2001.
Vale
destacar que um assunto complementar, o da regulamentação da qualidade, foi
tratado em outro estudo, dentro desse mesmo programa, por Braga (2000), e que
alguns outros temas correlatos estão em desenvolvimento, para os quais este
trabalho visa a servir de referência.
Este
texto está estruturado em seis itens, sendo que inicialmente, em 2,
descrevem-se alguns aspectos gerais das transformações por que têm passado os
setores elétricos de diversos países nos últimos vinte anos e algumas de suas
motivações mais diretas, para referenciar a discussão subsequente.
A
seguir, em 3, procura-se discutir as
relações entre regulamentação e mercado no setor elétrico e as possíveis
alternativas que uma sociedade pode adotar para estabelecer os preços da
eletricidade, face aos problemas criados pela necessidade de se aproveitar as
vantagens inerentes aos monopólios naturais.
Concluídas
as observações de caráter mais geral, foca-se, então, no quadro setorial
brasileiro. Em 4, partindo-se das formas que têm sido historicamente usadas
para a regulamentação do preço da energia elétrica no país, discute-se a
evolução recente do quadro institucional e a sistemática que tem sido adotada
para a definição dos preços regulados para as empresas de distribuição.
No
item 5, comenta-se o processo atual de introdução da concorrência e de formação
dos preços da geração a curto e a longo prazo, aponta-se a ausência efetiva de
competição pelos consumidores livres que deveria fornecer os primeiros exemplos
de concorrência a nível do varejo e discute-se as questões ligadas à expansão
da geração na presente fase de transição
Completa-se
o trabalho, em 6, sumariando algumas considerações críticas sobre o processo de
mudanças do setor de energia elétrica no Brasil e a construção de uma nova
realidade institucional setorial.
Mesmo
na impossibilidade de uma solução ideal, alguns erros podem ser evitados e o
debate amplo de alguns princípios gerais pode facilitar no aprimoramento das
opções em vigor. Tanto os mecanismos de competição quanto a regulamentação no
setor elétrico inevitavelmente têm falhas e a escolha deverá ser sempre pelo
sistema de formação de preços menos imperfeito. Somente a partir da consciência
dessas limitações é que se pode buscar aprimorar suas regras.
O
processo de transição para um novo modelo setorial ainda convive com muitas
pendências importantes. Ele precisa avançar na busca de maior eficiência
alocativa, tanto na ampliação do grau possível de concorrência, ainda muito
incipiente, quanto nas regras e instrumentos que delimitam o sistema de preços
e que garantam o apoio necessário à uma expansão racional do sistema.
2. Quadro Geral e Motivações das Transformações do Setor Elétrico – Casos Paradigmáticos
A
nível mundial, nas últimas duas décadas do Século XX, após os sobressaltos no
panorama energético, trazidos pelos choques de preços do petróleo, acelerou-se
um intenso processo de transformações institucionais do setor elétrico, marcado
sempre pela privatização (quando cabível) e pela busca da introdução de
elementos de concorrência e de estímulos aos ganhos de produtividade, com um
complexo conjunto de motivações e consequências.
Depois
de um longo período, ao longo da primeira metade do Século XX, em que, apoiados em ganhos de escala, os
custos da eletricidade vieram se reduzindo, transformando a eletricidade em um
produto de uso amplo e generalizado, os ganhos de produtividade se
interromperam, ameaçados por problemas nas disponibilidades de suas fontes e
pela necessidade de limitar seus impactos ambientais negativos.
Essa
situação foi ainda agravada pela rigidez dos elevados investimentos nas
unidades geradoras, que caracteriza o setor, já que, uma vez efetuados,
dificilmente podem ser revertidos, requerendo ainda muitos anos para sua
amortização.
Sob
a perspectiva de um preço alto e crescente dos derivados de petróleo,
viabilizaram-se diferentes projetos de produção de eletricidade, com contratos
a longo prazo, a custos unitários hoje considerados muito elevados, balizados
por elevados custos de referência da geração a combustíveis fósseis.
Normalizado o mercado de derivados, não era tão simples reverter seus impactos
sobre o setor elétrico. Situação que ficou ainda mais polêmica com a evolução
tecnológica posterior, que veio barateando a geração a gás natural.
A
este quadro de tensões, geradas por pressão dos custos crescentes, somava-se
uma tendência quase generalizada mundial de retirada do Estado do papel de
provedor direto de produtos e serviços, o que no setor elétrico tinha sido uma
opção de inúmeros países.
No
ambiente empresarial estatal, acomodam-se com mais facilidade os objetivos
estratégicos do seu controlador, mesmo quando estes conflitam com a obtenção
esperada de resultados. Essa possibilidade, que pode ser positiva para a
correção de falhas de mercado, entretanto, facilita a preservação de soluções
antieconômicas, quando grupos de interesse encastelados as apresentam como de
interesse público, tornando muito mais difícil para essas empresas corrigirem
rumos, face a mudanças de cenário.
As
pressões da sociedade pela redução dos custos e por uma alocação de recursos
mais eficientes vieram desaguar em um movimento de reformas setoriais que, ao
lado da ampliação da participação privada, permitiu eclodirem diversas
propostas de mudanças nos modelos vigentes, os quais de uma forma geral
estavam, em sua prática, por demais
associados ao modelo de governança estatal.
Com
alguns traços gerais identificáveis, esse processo se deu, em cada país, sob
circunstâncias específicas e com particularidades próprias. Mesmo sem entrar
mais em profundidade, alguns aspectos e motivações gerais podem ser facilmente
identificados.
No
principal paradigma de mudanças institucionais mundiais, a transformação do
sistema elétrico do Reino Unido teve como principais características a
privatização das empresas e a desverticalização do setor, segmentando as
atividades de geração, transmissão e distribuição, como ação necessária para a
introdução da competição na geração, inicialmente no atacado e,
progressivamente, no varejo.
Entre
a segmentação empresarial das atividades e a mera abertura de acesso às redes,
opção alternativa, as mudanças no Reino Unido seguiram a primeira abordagem,
mais radical, certamente facilitada pelo processo bastante mais anterior de
nacionalização que havia concentrado o setor sob controle de empresa estatal
única.
Se
o resultado da introdução da competição ainda não pode ser claramente
identificado, as conseqüências nítidas das mudanças foram sentidas, por um
lado, nas formas de geração, com a expansão do gás natural, em detrimento das
usinas nucleares, e com o fechamento de usinas a carvão doméstico e, por outro
lado, em dramáticas reduções dos quadros de pessoal das empresas.
Vale
comentar que a opção pela segmentação plena das atividades também não pode ser
ainda corretamente avaliada, já que, ao lado de vantagens competitivas e de uma
maior transparência de custos, ela traz novas dificuldades para o processo de
alocação de recursos e coordenação, substituindo relações de propriedade e
decisões hierárquicas por relações contratuais e decisões de mercado, nem
sempre mais eficientes que as primeiras.[1]
O
outro exemplo internacional mais significativo de mudanças no setor elétrico,
talvez seja o dos Estados Unidos, com características bastante diferentes do
modelo inglês, devido ao seu desenho original, com grande independência
regulatória entre os estados e com um setor majoritariamente privado e
extremamente fragmentado, com um grande número de empresas com características
bastante diferentes entre elas, tanto em termos de propriedade, como de tamanho e grau de verticalização.
Lá,
as principais mudanças se ligaram às tentativas de introdução da competição na
geração, geralmente no atacado, e, em alguns casos, no varejo, com a abertura
do acesso às redes, acompanhada ou não de um maior nível de segmentação.
Entre
os principais de fatores alavancadores do processo, estão, também, como no
Reino Unido, os avanços tecnológicos das plantas a gás natural e a maior
penetração dessa forma de geração, mais eficiente e, pelo menos potencialmente,
mais barata. Principalmente, os estados norte-americanos em que as transformações
institucionais estão mais avançadas são exatamente aqueles em que antes vigiam
custos muito elevados de geração, resultando em preços finais bastante acima da
média nacional[2].
As
possibilidades de geração mais barata deixavam as empresas sob o permanente
risco de não conseguirem recuperar os custos de parte significativa de seus
investimentos anteriores, o que as tornava mais suscetíveis a negociações com
os reguladores e menos resistentes às mudanças, desde que lhes fosse assegurado
algum nível de remuneração dos investimentos.
Este
foi, tipicamente, o caso do Estado da Califórnia, onde as principais
concessionárias locais tinham elevados custos de geração, principalmente de
origem nuclear e de formas renováveis, estes últimos através de contratos
compulsórios de longo prazo, realizados por força de legislação editada em
1978, que visava a responder às ameaças de crescimento dos preços do petróleo.
Com
a permissão dos reguladores para que essas empresas pudessem cobrar parte de
seus custos encalhados (stranded costs)
em alíquota específica na tarifa regulada, foi possível chegar-se a um
consenso, que facilitou a introdução de mudanças radicais do modelo setorial
estadual.
A
implantação de um novo quadro institucional e a gestão de mudanças em um setor
com as complexidades do setor elétrico, envolvendo interesses de tantos e tão
diferenciados agentes, não é tarefa simples. Ao lado da experiência bem
sucedida do Reino Unido, o exemplo recente dos problemas enfrentados pela
Califórnia serve para mostrar como este processo é difícil e passível de erros.
Apesar
do cuidadoso processo de negociação e preparação do novo desenho competitivo da
Califórnia, que envolveu audiências públicas, estudos conjuntos e entendimentos
entre as empresas, acompanhados de perto pelo regulador, sua implantação tem
sido comprometida por sérias dificuldades de abastecimento que tiveram seu
ápice no verão do ano 2000, em parte originadas por deficiências no desenho do
novo sistema.
Um
conjunto de fatores, incluindo uma forte resistência local dos grupos
ambientalistas à instalação de novas usinas, um crescimento expressivo do
consumo e fortes pressões sobre os preços do gás natural, cuja oferta não havia
sido devidamente ampliada, se uniram para levantar extraordinariamente os
preços da geração.
Ao
mesmo tempo, falhas no modelo regulatório liberaram os preços no atacado, mas
limitaram os preços aos consumidores finais, congelados por alguns anos, na
expectativa inversa de custos decrescentes de geração, os quais, mantidos os
preços finais, poderiam gerar recursos extras para recuperação de custos
encalhados. A reversão das expectativas fez com que essa situação se tornasse
destrutiva para as empresas distribuidoras, que, comprando a preços
elevadíssimos e vendendo a preços fixos,
foram levadas a uma situação falimentar.
A
impossibilidade de instalação de novas usinas[3]
na Califórnia mostra que mesmo os sinais mais fortes de mercado podem não ser
capazes de, por si só, dependendo das
circunstâncias, resolver adequadamente
a questão da expansão quando a demanda cresce muito, sem uma ação mediadora e
promotora do governo.
3. Regulamentação, Mercado e Formas de Formação de Preços
A
coordenação da oferta e demanda dos diversos produtos é feita, em uma economia
capitalista, pelo sistema de preços. Estes, ou são formados livremente pelo
mercado, ou são definidos a partir de uma intervenção maior ou menor dos
agentes reguladores. Considerações distributivas à parte, na situação
concorrencial ideal pode-se mostrar que os preços de mercado levam a uma
alocação eficiente de recursos[4].
Face
ao distanciamento dos mercados reais das condições ideais dos modelos de
concorrência perfeita, entretanto, torna-se inevitável a participação
reguladora do Estado no processo de determinação dos preços de alguns produtos[5].
No
caso do setor elétrico, a ocorrência de inúmeras imperfeições de mercado torna
necessário um significativo grau de envolvimento de seu regulador.
A
condição de monopólio natural apresentada pelas redes de transmissão e
distribuição é, talvez, o ponto mais notável que faz com que o preço a ser pago
pela prestação desses serviços tenha que ser obrigatoriamente regulado. O
monopólio natural tem vantagens econômicas óbvias, porém requer regulamentação.
Espera-se que as vantagens trazidas pela situação monopolista sejam também
partilhadas pelos consumidores e que compensem largamente as ineficiências
inerentes à regulamentação.
Aceitas
as vantagens da opção monopolista, há que se pagar o preço da imperfeição da
regulamentação, onde a alocação de recursos, em vez de coordenada pelo sistema
de preços, passa a ser fruto de um processo hierárquico de decisões, sempre
relativamente arbitrário, sob o controle do agente regulador.
Mais
ainda, devido ao fenômeno de informação assimétrica entre o regulador e a firma
regulada, o primeiro não tem meios de aplicar com precisão qualquer conceito
ideal em que se apoie para a definição dos preços, já que é praticamente
impossível para o mesmo conhecer com exatidão os custos e as necessidades das
empresas. O conflito inerente de interesses, da firma buscando maximizar seus
retornos e do regulador buscando um preço “justo”, reforça esta dificuldade e é
parte integrante do contexto monopolista regulado.
Preços
muito elevados transferem renda para as empresas, que deveria ser partilhada
com os consumidores; preços muito baixos inviabilizam as empresas eficientes e
sua necessária expansão, afugentado o capital da atividade. O desafio do preço
regulado é encontrar o equilíbrio entre esses dois pólos e, ao mesmo tempo,
penalizar ineficiências e preservar estímulos para ganhos de produtividade.
O
inevitável exercício de poder discricionário pelo regulador levanta ainda
inúmeros problemas de representatividade, já que (1) não é simples a identificação
clara dos interesses da sociedade, que devem nortear a ação do regulador, e (2)
tem-se sempre a possibilidade de sua captura por algum dos diversos grupos de
interesse que se formam em torno do setor elétrico. Embora menos comumente
destacado, também pode-se ter imperfeições decorrentes da ocorrência de
conflitos de interesses[6]
entre o regulador e a sociedade em geral, cujos interesses o regulador deve
representar, similares ao que se passa no interior de qualquer estrutura
hierárquica, com delegação do poder de decisão.
Aqui,
também, como nas empresas, as soluções, imperfeitas que sejam, passam pela
necessidade de monitoramento constante do regulador pelas entidades
representativas da sociedade. Complementarmente, é necessário que se separe
melhor o que são medidas de políticas mais amplas e o que é específico do papel
do regulador, funções que têm sido muitas vezes erradamente confundidas.
Nos
segmentos de geração e comercialização algum nível de concorrência pode ser
introduzido, o que pode, pelo menos em parte, substituir a necessidade de
intervenção da regulamentação. Mesmo, porém, quando isso é viável, a opção
institucional que se tem é entre duas alternativas, ambas imperfeitas, com
falhas, já que por mais que se procure estimular a concorrência, o número de
possíveis ofertantes é sempre relativamente reduzido.
Essas
dificuldades têm sido empiricamente constatadas, pelo menos até onde se pode
observar das experiências pioneiras recentes. No Reino Unido (veja-se, por
exemplo, Wolak e Patrick (2001) e
Newberry (1999)) e na California (veja-se Bornestein, Bushnell e Wolak (2000) e
Joskow e Kahn (2000)) têm sido identificadas, em diferentes trabalhos empíricos
recentes, fortes evidências de ocorrências do exercício de poder de mercado
pelos geradores, atuando fortemente sobre a formação de preços, principalmente
nos momentos de escassez.
Isto
não significa que o mercado não deva ser usado nesse sentido. Porém, fica bem
claro que ele tem falhas e que tem que ser acompanhado de ações institucionais,
incluindo medidas regulatórias complementares.
Deve-se
ainda observar que, ao se liberar a competição na geração, no todo ou em parte,
está se mesclando na formação dos preços finais um sistema de mercado com um
regulado, o que requer criterioso ajuste. Se a parcela regulada não for
absolutamente neutra face aos diferentes agentes, a competição poderá tanto não
ocorrer, como, pior ainda, pode ser totalmente distorcida.
A Concorrência e os
Preços da Geração
No
caso da geração, se totalmente regulada, sua formação de preços recai no quadro
geral, válido para os segmentos de transmissão e distribuição, que serão
examinados no que se segue. Aceitando, porém, que seus preços sejam
estabelecidos por mecanismos competitivos, uma série de novas questões ficam
pendentes para serem normatizadas.
Um
ponto de natureza geral refere-se ao fato de que, na maioria dos países em que
a competição na geração tem sido introduzida, ela ou têm sido limitada à
competição nas vendas no atacado pelas geradoras às distribuidoras e grandes
consumidores, ou tem sido mais ou menos gradualmente levada até aos
consumidores finais em geral.
A
competição exclusivamente no atacado tem o problema de que nela os consumidores
finais de pequeno e médio porte não participam, ou melhor, estão indiretamente
representados pelas distribuidoras, que, claramente, não têm obrigatoriamente
os mesmos interesses que eles. As duas soluções apontadas para este problema
têm sido ou obrigar que as distribuidoras comprem através de licitações, ou o
estabelecimento de um limite máximo nos preços que as mesmas podem repassar aos
consumidores finais.
Ambas
têm imperfeições, já que as licitações de compra de energia realizadas por
concessionárias privadas são de difícil controle pelo regulador e que, também,
o estabelecimento de um limite no preço repassável à tarifa final é de difícil
definição, com as dificuldades inerentes à definição de qualquer preço regulado
Liberando-se,
todavia, todos os consumidores finais para escolha de seu supridor, diretamente
ou através de entidades comercializadoras, e admitindo-se viável o
estabelecimento da concorrência efetiva no atacado, os ganhos trazidos por esta
nos preços da geração podem ser levados até eles.
Com
a liberação de todos os consumidores finais para escolha de seu supridor, a
questão que se coloca, na verdade, é fundamentalmente a de que se encontre uma
forma de organização cuja governança corporativa seja efetivamente adequada
para representar os consumidores na compra de geração a preços competitivos, já
que, a menos dos grandes consumidores, os demais terão que comprar através de
intermediários que agreguem várias demandas individuais.
Joskow
(2000a) tem defendido que a própria distribuidora possa exercer esse papel de
representar os consumidores, desde que os custos da geração comprada no
mercado, compensadas as perdas, sejam transferidos diretamente para as contas
dos consumidores que se mantiverem representados por sua distribuidora local.
Ele destaca que o segmento de comercialização[7],
em si mesmo, tem custos inferiores a 5% dos custos totais da energia elétrica e
que, portanto, a competição no mesmo não é muito relevante por si mesma[8],
ficando a questão restrita aos preços de compra que posam ser alcançados no
mercado atacadista.
Note-se
que, como esse tipo de intermediação ainda é relativamente recente, é possível
que novas soluções possam ser desenvolvidas para exercer essa função. Não
apenas empresas comercializadoras com fins lucrativos, como até mesmo entidades
cooperativadas podem ser tentadas, como alternativas.
O
que se necessita é dar flexibilidade aos consumidores finais, com soluções nas
quais os consumidores insatisfeitos, devidamente informados, possam trocar de
comercializador[9], para se
formar uma verdadeira competição nesse segmento.
Fazendo
com que os preços de compra da distribuidora sejam claramente transferidos para
os consumidores cativos e permitindo que outras entidades comercializadoras
venham a competir por esse mercado, é possível levar os efeitos da competição
no atacado até os consumidores finais, superando-se a necessidade de
regulamentações complementares, tipo limites máximos (caps) nos preços de geração.
À
medida que os compradores finais sejam efetivamente bem representados no
mercado atacadista, a interferência do regulador nesses preços pode ser quase
totalmente eliminada
Resta,
entretanto, sempre o problema gerado por situações extraordinárias, em que se
tenha uma situação estrutural de falta de oferta, que no setor elétrico leva
tempo para ser corrigida, mesmo com os estímulos adequados de mercado.
Nessas
situações, como o sucedido na Califórnia, há possibilidades de ganhos muito
elevados pelos geradores, independentemente de qualquer exercício distorcido de
poder de mercado. Estes preços, se repassados aos consumidores, levam os preços
finais a níveis muito acima da situação normal de equilíbrio. Se bloqueados os
aumentos aos consumidores finais, levam à quebra das empresas distribuidoras[10].
Acredito,
embora reconhecendo que seja um tema bastante polêmico, que em situações
especiais dessa natureza, algum limite superior, ainda que capaz de refletir o
custo de déficit, deva ser imposto aos preços da geração (e a seus insumos
energéticos, se for o caso).
Preços Regulados na Distribuição e na
Transmissão
Para os segmentos de transmissão e distribuição, na
impossibilidade de podermos contar com a concorrência, dadas as vantagens
econômicas de se manter as redes como monopólios, ter-se-ia, teoricamente, dois
processos básicos de definição de preços: (a) definição pelo regulador, e (b)
negociação direta entre as partes, com preços livremente estabelecidos.
Esta última opção, porém, só seria viável se as
partes tivessem a possibilidade de organização similar e poder equilibrado, o
que, em geral, não acontece no caso em exame. Ainda assim, em casos
excepcionais em que isso seja possível, envolvendo grandes consumidores que
ainda fossem se instalar ou que tivessem a possibilidade de desenvolver geração
própria alternativamente, tem-se todos os riscos de oportunismo e demais
problemas inerentes a relações contratuais envolvendo investimentos em ativos
específicos (Joskow (1993)).
Na
impossibilidade de se contar, de um modo geral, com as negociações diretas
entre as partes, fica-se restrito, então, à regulamentação direta e, nesse
caso, três modos básicos de formação de preço são possíveis:
(a)
pelo custo do serviço
– onde o preço pago pelo usuário está diretamente ligado aos custos históricos
incorridos pelos ofertantes, incluindo uma remuneração pelo capital, que é
definida sempre “arbitrariamente”, por mais sofisticados que sejam os
instrumentos usados em sua determinação;
(b)
buscando simular uma
situação hipotética de mercado – onde o preço pago pelos usuários se desvincula
dos custos diretos da empresa que os supre e se referencia pelos preços que um
“mercado” concorrencial hipotético cobraria, ou seja, pelo custo marginal do
mercado, simulando um mercado de concorrência perfeita, ou procurando simular
os chamados mercados contestáveis (vide Baumol e Sidak (1995) e Brasil Neto
(2001));
(c)
de forma
discricionária pelo regulador, a partir de, por exemplo, considerações exógenas
de política energética ou de políticas redistributivas, nesses casos
obedecendo, obrigatoriamente, à orientação de órgãos representativos da
sociedade – podendo ou não envolver alguma forma de negociação.
Esta última opção, caso (c), só se justifica em situações específicas e
excepcionais, sob o risco de inviabilizar o setor elétrico ao afastar seus
preços de sua lógica econômica. Mais ainda, qualquer definição nesse sentido
escapa totalmente do âmbito de competência e de delegação de poderes do
regulador e deve ser definida em lei.
De
qualquer modo, na prática, pelas próprios problemas inerentes à regulamentação,
sempre algum elemento discricionário[11],
mesmo que não intencional, irá entrar na determinação dos preços, afetando a
aplicação das alternativas anteriores.
O
uso das situações hipotéticas de mercado para reproduzir aquilo que a
concorrência faria, como base para a regulamentação de preços, caso (b) acima,
se possível e desejável fosse, nunca foi efetivamente implementado em termos
absolutos, já que no setor elétrico os custos dos novos investimentos podem ser
tanto muito menores quanto muito maiores que os custos médios, resultando, no
primeiro caso, na impossibilidade da empresa remunerar seus custos e, no
segundo, em possível geração de renda econômica excedente significativa.
Tanto
as possibilidades de ganhos de escala como de introdução de novas tecnologias
mais eficientes tendem a fazer com que, em muitas situações, os custos
marginais sejam inferiores aos médios. No Brasil, entretanto, o contrário
acontece com freqüência e, em muitos casos, o custo marginal é mais elevado que
o médio, devido a fatores tais como: extensão das redes a localidades com
população esparsa, na distribuição, e o esgotamento do potencial hidrelétrico
mais barato e a introdução de térmicas ou hidrelétricas mais caras, na geração.
O
uso de custos marginais tem sido mais empregado para formar a estrutura de
preços segundo os diferentes tipos de consumidores, nas diferentes estações e
horas do dia. Nesse sentido, uma proposta a ser melhor examinada é a de se
procurar uma solução tipo “second best”
( usando-se princípios de Ramsey, conforme Baumol e Sidak (1995)), ajustando-se
o preço médio pelo custo do serviço e os preços relativos inversamente
proporcionais às elasticidades, em cada caso. Devido às dificuldades práticas
para que o regulador consiga identificar as elasticidades de cada
"“produto", Baumol e Sidak propõem, definidos um preço médio e
limites inferiores e superiores para cada preço individualizado, deixar às
próprias concessionárias a realização desse ajuste, já que elas têm melhor
conhecimento de seus consumidores e que o interesse das mesmas convergiria naturalmente
para a proposta de Ramsey.
Um
outro obstáculo à determinação precisa e uso dos custos marginais é que estes,
em tese, deveriam ser aqueles gerados pelo mercado e não pela empresa regulada
(que seria uma “price taker”). Mas,
na ausência de competidores reais nas condições específicas de cada empresa, o
valor mais próximo que se tem para estes custos são os da própria empresa
regulada. Na melhor das hipóteses, o regulador é obrigado a construir um tipo
de “empresa eficiente ideal” ajustada às circunstâncias específicas de cada
caso, para então estimar os custos marginais.
Mesmo
a proposta um pouco menos restritiva de Baumol e Sidak, em que algumas
condições exigidas pela concorrência perfeita são relaxadas, privilegiando
apenas a possibilidade de entrada e saída, sem custos, de novos competidores,
envolve o uso dos custos marginais e a determinação de custos de referência que
seriam praticados por virtuais competidores, não se tem notícia de nenhuma
aplicação prática da mesma no setor elétrico.
Deve-se
observar, ainda, que, na verdade, não se tem na prática formas puras de
regulamentação de preços. Além disso, devido aos custos que inviabilizam a
possibilidade teórica de se obter informações completas, sempre algum elemento
discricionário estará envolvido na determinação dos custos na visão do
regulador, sejam marginais, sejam médios.
Mesmo
pela regulamentação tradicional pelo custo do serviço, a discussão entre o
regulador e a empresa sobre que investimentos são “justos” e devem ser usados
na base de cálculo da remuneração, assim como que taxa de remuneração deve ser
usada, de um certo modo costumava envolver, indiretamente, o custo marginal, ao
referenciar essa discussão, por comparar as opções assumidas pela empresa com
investimentos alternativos.
Em
casos em que o desenho regulatório procura se afastar do estabelecimento do
preço pelo custo médio do serviço, em prol de um custo tendendo para o
marginal, as dificuldades geradas por custos marginais decrescentes têm levado
a soluções discricionárias de acomodação.
Exemplo
disso pode ser visto nas soluções que têm sido dadas para a transição da
formação de preços da geração, de regulada pelos custo do serviço para liberada
ao mercado, tendendo para o custo marginal. Nos Estados Unidos, face aos problema
dos stranded costs incorridos na
construção de usinas[12],
na fase de transição institucional, os reguladores têm permitido[13]
a remuneração destes custos, embora a taxas de retorno mais baixas que as
usuais.
Existem,
na verdade, inúmeras soluções possíveis para a regulamentação, intermediárias
entre (a) e (b), englobando os dois princípios. Por exemplo, a opção pelo custo
marginal pode ser feita com base nos custos marginais da empresa, que não são
obrigatoriamente os do mercado; uma outra solução híbrida seria regular pelos
custos médios, mas não os da própria empresa, e sim com base nos praticados por
empresas similares, no que é conhecido como “benchmark competition”.
Explicitadas
as considerações básicas acima sobre a formação de preços, dois aspectos
adicionais importantes devem ainda ser destacados, o primeiro em relação aos
aspectos dinâmicos do processo de regulamentação e o segundo sobre as formas de
tradução dos custos nos preços, tanto face à heterogeneidades dos sistemas,
quanto à ocorrência de externalidades.
Em
primeiro lugar, a fixação dos preços tem que ser pensada em termos dinâmicos,
já que os custos e condições de mercado mudam continuamente. Então, qualquer
que seja o critério básico adotado, é necessário atualizar os preços periodicamente
e, para isso, pode-se seguir dois tipos principais de procedimentos:
(a)
repetir o procedimento
básico com alguma periodicidade, tipicamente annual;
(b)
repetir o procedimento
básico a intervalos maiores, plurianuais (revisões), e trabalhar com reajustes semi-automáticos
intermediários; neste caso, alguns mecanismos diferentes podem ser adotados, os
chamados:
(b1) “price-cap”, corrigindo os
preços por regras pré-fixadas nos reajustes intermediários (usualmente anuais),
função da inflação e dos aumentos de custos exógenos;
(b2) “revenue-cap”, corrigindo-se os
preços nos reajustes intermediários de modo a manter a receita total abaixo de
um dado limite, segundo regras pré-fixadas.
O
sistema de reajustes e revisões, item (b), foi inicialmente adotado no Reino
Unido, por sugestão de Littlechild (Vide Newbery (2000)), e representou
significativo avanço nos métodos de regulamentação do setor elétrico,
introduzindo claramente elementos de estímulo a ganhos de eficiência para as
empresas reguladas.
Ambos
os modelos (b1) e (b2) proporcionam à empresa estímulos econômicos para buscar
ganhos de produtividade no período que vai entre duas revisões sucessivas
(usualmente de cinco anos), sendo que o primeiro tipo, mais empregado, é mais
adequado quando os custos estão sujeitos a variações maiores.
Em
segundo lugar, os custos incorridos pelas empresas de distribuição para atender
cada consumidor são diferentes, e sua tradução nos preços é, inevitavelmente,
feita por meio de valores médios. Esse problema é parcialmente tratado com a
diferenciação tarifárias por tipo de consumidor, hora do dia e estação do ano.
Mesmo assim alguma distorções significaticas podem ocorrer, como será apontado
mais adiante, ao discutir-se a situação atual de concorrência pelos
consumidores livres.
É
possível que, com a redução dos custos de medição, comunicação e de
processamento, venham a acontecer, no futuro, mudanças sensíveis na atual
“homogeneidade” de preços da distribuição, principalmente estimuladas pelo
quadro de desregulamentação e pelo surgimento de novos agentes, usualmente mais
propensos à inovação.
No
segmento de transmissão, a questão de relacionamento entre preços e custos se
coloca, ainda, de maneira muito mais complexa do que na distribuição, em função
do forte inter-relacionamento entre os diversos ativos de transmissão, o que
exige um difícil rateio de receitas, principalmente nos sistemas em que os
diversos trechos da rede podem ser de propriedade de inúmeros agentes
diferentes.
Quando
a linha de transmissão pode ser assumida como parte da concessão de geração, ou
então da de distribuição, o estabelecimento do preço por seu uso direto se
simplifica, recaindo na transferência direta de custos para preços regulados,
acima exposta.
Quando,
entretanto, está se falando de uma linha de integração, envolvendo diferentes
geradores e consumidores, os efeitos da mesma se distribuem pelo sistema, tanto
em termos fluxos de energia, como em termos de confiabiliadade, gerando varias
externalidades de difícil contabilização.
Do
ponto de vista de como determinar as receitas necessárias para remunerar os
investidores, continuam valendo as mesmas hipóteses anteriores, levantadas para
o estabelecimento de preços para redes em monopólio natural. Mas, no momento em
que se vai traduzir estes custos em preços, surgem as dificuldades, porque os
benefícios ultrapassam de muito o uso direto das linhas e são usufruídos por
diversos agentes.
Duas
principais filosofias têm sido propostas, mundialmente, para como, a partir do
volume de recursos necessário para remunerar os operadores de transmissão,
definir quanto e a quem cobrar pelo uso das linhas, que são os sistemas
alternativos de: (a) cobrança diferenciada em função da localização do
consumidor e da carga contratada (nodal), ou (b) cobrança partilhada igualmente
por todos os consumidores (“selo postal”). A discussão desse tema ultrapassa de
muito o objetivo do presente trabalho e pode ser vista em Newbery (2000).
Note-se
que as novas formas de estabelecimento dos preços de transmissão formam um exemplo
de uma das mais importantes mudanças conceituais que vêm sendo introduzidas nos
desenhos institucionais do setor elétrico, que é a separação entre o que
acontece no mundo físico e no financeiro, como forma de internalizar
externalidades, que, de outro modo, dificilmente seriam consideradas por
empresas individualizadas.
Também
no setor elétrico brasileiro, dominado pela geração hidrelétrica, tipicamente
fonte de externalidades, seja entre usinas da mesma bacia, seja entre bacias de
regimes hidrológicos diferentes,
sistema similar de separação fisíco-financeira foi adotado, conforme se
aponta mais adiante.
4. Formação de Preços e Concorrência no Brasil: Evolução Recente
Motivações das Transformações
No
Brasil, o anseio por mudanças, dentro do próprio setor[14],
já era grande, devido à situação de desorganização financeira dos anos oitenta.
Em um processo, que se pode marcar como tendo início no ano de 1993[15],
o quadro institucional então vigente, hierárquico, predominantemente estatal e
regulado nominalmente pelo custo do serviço, começou a se alterar[16].
Acompanhando
as tendências internacionais, “as regras do jogo” do setor começaram se
modificar, ao mesmo tempo em que os novos atores privados vieram a assumir o
controle de parcela significativa das empresas de energia elétrica.
Enquanto
que, nos países desenvolvidos, elevados preços da eletricidade geravam maiores
pressões de grupos de interesse dos consumidores por uma maior eficiência,
facilitando as reformas, no Brasil se vivia situação diversa, com um parque
gerador basicamente hidrelétrico, com uma geração eminentemente estatal, com
seus preços artificialmente contidos por uma política que priorizava o controle
da inflação.
Ainda
sem perspectiva suficiente para uma visão mais completa, acreditamos ser
possível agrupar as motivações principais para as mudanças setoriais em dois
grupos de fatores. O primeiro deles, ligado ao impacto da globalização e a uma
certa tendência a reproduzir aqui aquilo que vai acontecendo nos centros mais
desenvolvidos, cuja comunicação nos alcança cada vez mais rapidamente[17].
O
segundo, mais profundo, ligado à mudança do papel do Estado e à crise quase
permanente de inadimplências em que vivia o setor, com tarifas totalmente
dissociadas das necessidades setoriais.
Uma
mudança da lógica que dominava a regulamentação do setor, passando a seguir
princípios econômicos mais explícitos, tem sido tanto causa como efeito da
criação de condições para a entrada de investidores privados.
As
maiores forças motivadoras das transformações setoriais foram, possivelmente,
as questões de reformulação do papel do Estado e da obtenção de uma maior
eficiência alocativa e gerencial, acompanhadas da preservação do equilíbrio
econômico-financeiro do setor elétrico, que se havia, ao menos parcialmente,
alcançado em 1993.
Desse
modo, alterou-se, simultaneamente, a
natureza dos agentes empresariais, pelo processo de privatização e de retirada
do Estado dos investimentos na expansão, e o desenho do quadro regulador, com
crescimento do papel da competição e do mercado.
Deve-se
observar, ainda, que, em paralelo, no pano de fundo das mudanças
institucionais, se colocava (e se coloca), ainda, a questão complexa da
ampliação da penetração do gás natural em um setor fundamentalmente
hidrelétrico, assim como a da continuidade da expansão hidrelétrica, agora com
investidores privados, em um contexto de pouca experiência no país, tanto com
os novos modelos de captação de recursos, como de negociações com as fontes de
gás.
Finalmente,
cabe ainda comentar que a radical diferença entre as motivações que levaram às
transformações setoriais, no caso brasileiro e nos casos citados da Califórnia
e do Reino Unido, onde os preços da energia e, principalmente, da geração
estavam bastante elevados, tem consequencias significativas quanto à avaliação
e a aceitação desse processo pela sociedade em geral, que, nestes últimos
exemplos, era demandado pelos próprios consumidores.
No
Brasil, como a situação era radicalmente oposta, com os preços de geração
extremamente depreciados, a motivação de mudança veio mais de dentro do próprio
setor[18],
movido pela necessidade de recuperar um desenho institucional com regras
estáveis, incluindo preços ajustados, o que, no caso da geração, significa um
inevitável reajuste para cima, muito mais difícil de ser absorvido no curto
prazo pela sociedade, embora benéfico e mesmo indispensável, a longo
prazo. Note-se que a energia mais cara
é aquela que falta.
Talvez,
por isso mesmo, face ao temor dessas dificuldades pelos agentes envolvidos, é
que o processo de mudanças, não tenha sido suficientemente trabalhado no âmbito
do Congresso Nacional, deixando, hoje, algumas pendências a serem,
inadequadamente, conduzidas pela agência reguladora.
A
falta de uma explicitação nítida e de uma reflexão mais detalhada sobre as
reais motivações para a mudança nas diferentes condições do sistema brasileiro
certamente obscureceu pontos fundamentais que, embora identificados, foram
negligenciados na formação do novo modelo, em particular os ligados à
preservação dos investimentos no sistema hidrelétrico, assim como diversos
aspectos da nova sistemática de formação de preços.
Regulamentação pelo Custo do Serviço com Remuneração Garantida
O
modelo histórico de regulamentação de preços no Brasil e que foi adotado na
maior parte do Século XX, reproduzindo o padrão dos princípios gerais no mundo,
na época, era o de regulamentação pelo custo-do-serviço, em que, somando-se
todos custos incorridos em todos os segmentos, da geração à comercialização
final, desde que fossem considerados justos, e considerando uma remuneração
predeterminada para o capital, entre 10 e 12%, chegava-se à tarifa final a ser
fixada.
Na
verdade, esse processo, na prática, estabelecia, na melhor das hipóteses,
quando não discricionariamente aplicado,
um padrão de discussão para que, entre o regulador e a empresa, se
chegasse a algum valor próximo da remuneração requerida, face aos custos reais
da empresa. Face à assimetria de informações inevitável e face, ainda, ao fato
de que o preço que se procurava estabelecer valeria para um período futuro,
que, embora próximo, estava eivado de incertezas, não se tinha como se ter
resultados precisos.
Apesar
da falta de estímulos econômicos, que promovessem a eficiência e ganhos de
produtividade, o sistema tinha a vantagem de garantir que os novos
investimentos na expansão do setor seriam incluídos na base usada para cálculo
tarifário e, portanto, remunerados a contento, funcionando como estímulo à
expansão (no limite, como estímulo à formação de capacidade ociosa excedente).
Teoricamente,
apesar de seus problemas, o método funcionou por algum tempo e poderia ter
continuado funcionando. Na pratica, porém, foi progressivamente desrespeitado,
com a tarifa historicamente usada como instrumento (de curto prazo) de combate
à inflação, criando problemas graves à expansão do setor a longo prazo, só não
agravados porque a natureza estatal das empresas fazia com que as mesmas
continuassem a investir, mesmo com uma rentabilidade duvidosa e grandes riscos regulatórios.
Como
tentativa de aprimoramento das regras de tarifação, buscou-se introduzir o uso
dos custos marginais. Estes porém, como acima indicado, têm sua utilização
prática limitada à definição da estrutura de preços relativos.
Processo de Reformas Institucionais
A
reforma institucional do setor elétrico brasileiro teve suas pré-condições
estabelecidas já pela Lei 8.631/93, que, além de promover o equilíbrio
financeiro setorial, individualizou as tarifas, anteriormente equalizadas em
todo o país, e introduziu fórmula paramétrica para regular o processo de
reajuste tarifário
São
também desta fase inicial os primeiros esforços para a montagem de projetos
conjuntos de geração entre empresas estatais e a iniciativa privada, que
envolveram a construção das usinas hidrelétricas de Itá, pela Eletrosul, e de
Serra da Mesa, por Furnas, mesmo com
todas as limitações do quadro regulador então vigente.
É
ainda de 1993 a primeira tentativa de viabilização do conceito do livre acesso
às redes de transmissão, por meio do Decreto 1009/93, que abriu o acesso ao
sistema de transmissão do Sistema Eletrobrás a autoprodutores e concessionárias
em geral, sem grandes consequências práticas pela falta de um quadro regulador
mais amplo.
O
processo de mudanças vai ter seu marco radical de ruptura, porém, estabelecido
pela legislação mais geral representada pelas chamadas Leis das Concessões. Com
a primeira delas, a Lei 8.987/95, a obrigatoriedade da realização de
licitações, basicamente pelo menor preço de venda de energia, ou pelo maior
valor pago à União para a outorga concessões de serviços públicos, introduziu
uma dimensão competitiva nesta outorga.
Por
aquela primeira lei, a tarifa dos serviços públicos concedidos passava a ser
regida pelo preço fixado na proposta vencedora da licitação e suas regras de
revisão deveriam ser determinadas pela legislação, pelo edital e pelo contrato
de concessão, do qual, junto com o preço, eram cláusula essencial. Desse modo,
toda a legislação anterior, baseada no custo do serviço, não mais tinha que ser
obedecida para qualquer tipo de concessão nova licitada.
Na
segunda Lei das Concessões, a Lei 9.074/95, explicitou-se que também o
aproveitamento energético dos cursos de água (concessões de bens públicos)
estava sujeito às licitações para sua concessão, nos termos de ambas as leis,
alterando de vez a antiga forma de distribuição das mesmas entre as empresas
estatais. Também esta lei formalizou a situação dos Produtores Independentes de
Energia, com regras operacionais e comerciais próprias, cujos preços de venda
ficavam sujeitos a critérios gerais a serem fixados pelo poder concedente.
Posteriormente,
as licitações de projetos de geração tiveram que passar a ser feitas na
modalidade de maior valor pago à União, para não amarrar, antecipadamente, os
preços finais do produto.
Ainda
a Lei 9.074/95 separava a rede de transmissão considerada como rede básica,
sujeita a concessões específicas, com preços próprios, dos demais elementos de
rede, englobados ou nas concessões de geração, ou nas de distribuição, e
remunerados junto com as mesmas.
Note-se
que esta legislação, embora acompanhada com ansiedade pelas empresas do setor,
não teve sua aprovação acompanhada pela discussão completa do novo marco
regulador. Apesar de suas conseqüências terem sido bastante profundas, seu
debate ficou restrito apenas aos aspectos imediatamente afetados por ela.
Além
disso, como o processo de concessão de novas licitações passou a ser aberto e
disputado pelos agentes privados, e, a par dessas leis, o governo optou por
afastar suas empresas da expansão, pode-se dizer que com elas, além da
introdução da competição, a expansão da geração foi delegada indiretamente ao
setor privado.
.
Ainda
em 1995, iniciou-se o processo de privatização das empresas federais, pelas
distribuidoras, com a venda da Escelsa, seguida, mais tarde, pela venda da
Light. Na falta de definições legais para as regras do setor, os editais e
contratos de concessão serviram de instrumentos para balizar esse processo.
Com
as duas Leis das Concessões, caiu em grande parte toda a sistemática de
regulamentação pelo custo do serviço, gerando um vácuo legal e regulatório,
cuja necessidade de rápido preenchimento se fazia sentir, tornando ainda mais
indispensável uma reorganização institucional, espaço que, em projeto
contratado pela Secretaria de Energia do Ministério de Minas e Energia
(SEM/MME), a Coopers & Lybrand procurou parcialmente ocupar, ajudando a
desenhar as linhas mestras da mudança que já havia se iniciado.
Mesmo
sem que esta proposta tenha passado, como deveria, por um necessário processo
amplo e efetivo de debates, negociação e ajustes entre os agentes setoriais,
ela teve o mérito de fornecer uma diretriz para as iniciativas do novo agente
regulador que havia sido criado[19],
a ANEEL, e para a Lei 9.648/98, que criou as condições mínimas para a
operacionalização desse novo modelo, dando origem à formação do Operador
Nacional do Sistema (ONS) e do Mercado Atacadista de Energia (MAE).
O “Price-Cap” e o Serviço pelo Preço
Com
a Lei 9.427/96, de criação da ANEEL, o novo sistema de tarifação ficou um pouco
mais claro, embora ainda bastante incompleto, ficando estabelecido o regime de
serviço pelo preço, com tarifas fixadas por contratos resultantes de licitação
ou renovação de concessões e/ou do processo de privatização, ou por ato
específico da ANEEL, em caso de revisão ou reajuste. Este regime passou a ser
válido para quaisquer concessões, sejam elas de geração (se reguladas),
transmissão ou distribuição. Desse modo introduziu-se uma dimensão competitiva
na fixação inicial desses preços, já que, no primeiro momento, eles resultam de
uma operação de mercado, embora, nas etapas seguintes, recaiam em preços
regulados.
Como
esses preços são dinâmicos e têm que ser revistos periodicamente, os editais e
contratos, tanto de privatização como de concessão de distribuição, embora não
expresso formalmente em Lei, passaram a adotar como regra, após 1995, um
sistema de “price cap”.
Pela
Lei 8987/95, as revisões dos contratos de concessão devem ser feitas de modo a
manter o equilíbrio economico-financeiro dos contratos. Aqui, porém, recaí-se
na virtual impossibilidade de se definir o que seja este equilíbrio, já que não
é possível harmonizar-se as condições iniciais sob os pontos de vista do regulador
e do concessionário, cada qual com a sua avaliação própria do investimento.
Como resultante, os processos de revisão passam a depender dos critérios
adotados pelo regulador, hoje basicamente suportados pela análise do
custo-do-serviço.
Através
de todas estas mudanças, as novas regras tarifárias vieram sendo construídas
aos poucos, desde a ruptura criada pelas Leis das Concessões. Embora esse
sistema não reduza os custos de monitoramento, ele traz estímulos econômicos
para ganhos de eficiência, o que é certamente um grande avanço. Mas, ao
contrário do sistema anterior, pontos importantes não foram especificados em
Lei, mas apenas por Portarias da ANEEL, em particular, a definição dos
critérios de revisão dos preços regulados.
A Nova Regulamentação e a
Concorrência na Geração
Finalmente,
com a Lei 9648/98, já balizada pelo projeto da Coopers & Lybrand, e criando
órgãos para a gestão da rede e do mercado atacadista, completou-se a liberação
dos preços da geração no atacado, não apenas para os produtores independentes,
mas para todas as operações de compra e venda de energia elétrica entre
concessionários ou autorizados.
Esta
nova sistemática, que se instala com a criação do ONS e do MAE, vai ser melhor
explicitada pelo Decreto 2.655/98, que regulamenta e detalha os termos desta
Lei.
No
novo contexto, toda a energia comercializada no sistema interligado o deve ser
no âmbito do MAE, sendo que a parcela não contratada bilateralmente tem sua
regra de determinação de preços expressa no Acordo de Mercado, assinado pelos
participantes e homologado pela ANEEL.
Pelo
novo sistema, os preços dos contratos para venda de energia ficam liberados, a
menos dos chamados contratos iniciais, com preço regulado e vigindo em período
de transição, a se encerrar completamente em 2006, a partir de quando a Lei
prevê a completa liberação dos preços da geração, a serem estabelecidos nas
negociações contratuais bilaterais entre os agentes.
Já
para a energia não contratada e comercializada no curto-prazo, os preços passam
a ser definidos pela entidade responsável pelo mercado, em função dos valores
marginais (duais) indicados pelo algoritmo de otimização do despacho e
calculados por regras devidamente aprovadas pelo regulador.
Embora
não esteja completamente explicitada, nem na lei, nem no seu decreto regulador,
a sistemática proposta pela Coopers & Lybrand orientou estes diplomas
legais, assim como as regras subseqüentemente validadas pelo acordo do MAE.
Em
particular, manteve-se a filosofia de separação fisíco-financeira da
comercialização na geração hidrelétrica, sendo que a própria Lei 9648/98 prevê
a existência dos mecanismos de relocação de energia para mitigação de risco
hidrológico, parte essencial para a implantação desta separação. O Decreto 2.655/98, por sua vez, além de
melhor caracterizar o mecanismo de relocação, assegura que cada usina deverá
ter direito de comercializar uma dada fração da energia assegurada[20]
do sistema, a ela alocada.
Como
a competição pela geração ainda está limitada aos grandes consumidores,
conforme anteriormente discutido, enquanto essa limitação se mantiver fica
pendente a questão dos custos de geração para os consumidores cativos, sem
acesso direto ao mercado. Nesse sentido, essa Lei estabeleceu, ainda, que a
ANEEL deve fixar critérios para limitar os repasses dos custos de compra de
energia por parte das distribuidoras aos consumidores dela cativos.
Desenvolvido
de forma relativamente segmentada, em uma seqüência de leis e normas pouco
coordenadas, esse novo desenho institucional está ainda se fazendo e muitas
questões requerem aprofundamento.
Por
isso mesmo, a implementação do mercado atacadista de energia ainda está
dependendo de inúmeros ajustes em suas regras. Entre as dificuldades, o desenho
vigente deixou margem para pleitos conflitantes, diante de uma difícil situação
“atípica” de racionamento, com fortes conflitos de interesses entre os agentes,
como o que está se dando em relação ao chamado Anexo V dos contratos iniciais,
e cuja solução vai, inevitavelmente, requerer das partes envolvidas um processo
negocial, que admita as precariedades do modelo, ainda em montagem, e que
entenda que a construção de regras estáveis é do interesse e de
responsabilidade coletivos.
Se
já seria difícil estabelecer as “regras do jogo” para o mercado em uma situação equilibrada, muito mais complexo era
antever todas as particularidades das transações a se efetuarem durante um
racionamento.
A Regulamentação dos Preços da Transmissão
Quanto
aos preços da transmissão, a Lei 9648/98 prevê que os mesmos sejam regulados
pela ANEEL, sendo a contratação e administração desses serviços, assim como de
suas condições de acesso e serviços ancilares, de responsabilidade de ONS. As
condições gerais de contratação de acesso e uso das instalações de transmissão
da rede básica estão, complementarmente, regulamentadas pela Portaria 248/98 da ANEEL.
No
período de transição, os encargos de transmissão estão sendo pagos
explicitamente apenas pelas distribuidoras e pelas novas unidades geradoras.
Quando a geração estiver totalmente liberada para o mercado, os encargos de
transmissão serão cobrados meio a meio da geração e da carga, conforme
preconizado no projeto da Coopers & Lybrand.
Anualmente,
a Aneel faz as previsões das necessidades de remuneração dos ativos de
transmissão, inclusive obras em andamento, e dos custos aprovados para a
manutenção do ONS, e calcula as parcelas a serem cobradas das diversas
concessionárias, em função de sua localização.
O
pagamento dos novos agentes de transmissão tem por base o serviço pelo preço,
referido à licitação que lhes outorgou a concessão. Esses valores são
corrigidos por regras de reajuste previstas em cada contrato de concessão.
Nesse caso, não faz sentido a aplicação de um sistema tipo price cap, pois o grosso do custo é de investimento e não parece
haver espaço significativo para ganhos de produtividade. Pelo contrário, têm
sido previstas multas (reduções da remuneração) em caso de falhas de desempenho
causadas por manutenção insuficiente.
A Revisão dos Preços Regulados da Distribuição
Se
no caso da transmissão o conceito de serviço pelo preço parece se aplicar de
maneira adequada, já que o preço da licitação se liga a um dado ativo bem
definido, não envolvendo em si mesmo questões de expansão, nem de ganhos de
produtividade, o mesmo já não é verdade para o segmento de distribuição
Aqui,
conforme previsto nos contratos de concessão e na legislação, os preços devem
ser revistos periodicamente (em geral a cada cinco anos), por metodologia de
reajuste deixada a cargo da Aneel, e onde as leis não fornecem princípios
claros para guiar esses reajustes.
Conforme
apontado anteriormente, o quadro legal que sustenta esse sistema tem sua base
nas Leis 8997/95 e 9.427/96, sendo que a primeira explicita que os preços devem
ser revistos de modo a manter o “equilíbrio econômico-financeiro” do contrato,
que, como foi dito, não é de definição simples.
Equilíbrio
sob qual ponto de vista e com que base? A usada no calculo do preço mínimo do
leilão? A das estimativas do comprador? A vantagem da operação de mercado é que
cada agente faz os seus cálculos e esses números resultam de suas estimativas,
feitas com sua análise própria, informação que vai se traduzir exclusivamente
nos preços resultantes do processo. Na seqüência de revisões desses preços,
entretanto, em cenários econômicos e empresariais cada vez mais distanciados,
essa vantagem vai progressivamente se perdendo
Note-se
que o mecanismo das revisões tem estado previsto nos editais e contratos.
Portanto, um mero reajuste para cobrir as variações de custo não o substitui.
Na falta de definição legal clara, além da transferência dessa responsabilidade
para Aneel, esta tem proposto em audiência pública o uso de princípios que
parecem se enquadrar na visão de custo-do-serviço.
É
na convicção de que elementos de natureza concorrencial devem ser introduzidos
nesse processo que se situa o trabalho de Brasil Neto (2001), que levanta uma
discussão difícil, mas necessária. Sua proposta básica é que, em cada reajuste,
seja estabelecida a meta de desempenho competitivo para cada empresa, com base,
principalmente, em comparação com padrões de desempenho de outras empresas em
condições as mais similares possíveis (tipo “benchmark
competition”), e que preço compatível com estes custos seja a meta, não
para a revisão presente, mas para a próxima (através da aplicação do fator X),
e que na presente se negocie um nível de preços entre os níveis vigentes antes
da revisão e os “ideais”.
Como
referência básica para a negociação dos níveis de preço nas revisões, no que se
refere às parcelas não competitivas de custo das empresas (que seriam
realizadas com de forma mais eficiente por novas empresas que entrassem no
mercado), poder-se-ia adotar um critério tipo custo-do-serviço, mas com uma
taxa mais reduzida que a esperada pelo setor para recuperação do capital,
considerando esta parcela como um custo encalhado (stranded).
Na
formação dos preços relativos dos diferentes “produtos”, Brasil Neto sugere que
se procure dar maior liberdade às empresas, dentro de limites máximos e
mínimos, em cada caso, conforme desenvolvido por Baumol e Sidak.
A
diferença mais expressiva dessa proposta em relação ao uso puro e simples do
custo-do-serviço, é que ela reconhece, explicitamente, a assimetria de
informação entre regulado e regulador, e entende o processo como fortemente
negocial, em cima de princípios que visam, gradualmente levar a empresa a
padrões de eficiência do mercado.
5. A Competição e os Sinais de Mercado na Expansão
A Formação dos Preços da Geração a Curto Prazo
Conforme
historiado acima, o modelo em implantação segue uma diretriz de segmentação da
atividade de geração, com seus preços apoiados em contratos de longo prazo,
livremente estabelecidos entre as partes e balizados, no curto prazo, por preços
regulados, que refletem o custo marginal, para as parcelas não contratadas.
A
característica fortemente hidrelétrica do sistema brasileiro e com um potencial
disponível para expansão desta fonte, de, pelo menos, a mesma ordem de grandeza da capacidade já
instalada, faz com que esse modelo tenha características próprias, bastante
diferenciadas dos modelos internacionais, tanto por razões operacionais como
pelas necessidades de expansão.
A
nível operacional, esta característica foi plenamente incorporada no desenho do
novo modelo institucional brasileiro. Um parque hidrotérmico exige uma operação
integrada, com uma significativa intervenção de um agente coordenador, capaz de
gerenciar todas as externalidades inerentes ao processo, incluindo suas consequências
em termos de preço da energia hidrelétrica.
Nesse
sentido a solução atualmente adotada parece, por um lado, ser bastante sensata,
fazendo-se o despacho, não por regras de mercado, mas sim buscando a otimização
da operação e deixando-se que o valor marginal, obtido a partir desses
cálculos, seja referência para a definição de seus preços. Deve-se observar,
todavia, que essa opção traz, em contrapartida, uma perda em relação a um
mercado efetivo, que é a leitura que este traz das expectativas dos diversos
agentes.
Assim,
na metodologia atual, a referência básica, diária, para o mercado permanece
regulada, com preços que seguem uma proxy
do que seria alcançado por um mercado concorrencial ideal. A partir dessa
referência, é, todavia, perfeitamente possível que se façam contratos
específicos entre as partes, mesmo dentro de um horizonte de curto prazo.
Esta
solução apresenta alguns aspectos próprios, que merecem destaque. Como o
sistema brasileiro é de regulamentação plurianual e tem a possibilidade de
armazenar “energia” potencial sob a forma de água, suas decisões de operação
têm que levar em conta um horizonte de vários anos, vinculando fortemente as
ações em diversos períodos, ao contrário do que acontece em um sistema de base
térmica. Assim, sua otimização embute uma visão de vários anos para frente e os
preços dela derivados refletem as expectativas sobre o comportamento futuro do
sistema. Quão melhor for a qualidade dessa modelagem, tanto melhores serão os
sinais de preços por ela fornecidos.
O
uso dos resultados de um modelo como uma “proxy” para os preços de curto prazo
tem, como maior defeito, o fato de necessitar como pré-requisito uma definição dos cenários da evolução da oferta
e da demanda para alimentar o algoritmo. Quando é o mercado que estabelece
esses preços, ele reflete os conjunto de expectativas dos diversos agentes e em
relação às quais eles aplicam efetivamente seus recursos. É característica dos
preços de mercado “economizarem informações” em relação às alocações de
recursos realizadas dentro de hierarquias.
Assim
a possibilidade da compatibilização do uso de um efetivo mercado spot, de
alguma maneira, com a otimização física da operação, precisa ser estudada com
mais profundidade, mesmo com alguma perda desta última.
Deve-se
destacar, ainda, que uma das principais virtudes da metodologia atual é que,
pelo menos parcialmente, ela incorpora uma externalidade significativa, de
difícil mas necessária internalização pelos agentes privados, que é o custo de
déficit, parâmetro relevante para os cálculos do algoritmo. Caso efetivamente
se implemente um sistema de mercado para o curto prazo, substituindo os preços
hoje gerados pelo modelo, essa implementação terá que ser acompanhada de
medidas reguladoras, que, de alguma maneira, imponham um nível mínimo de
garantia de suprimento, já que o custo social do défcit não será mais incluído
nas avaliações dos agentes.
A Formação dos Preços da Geração a Longo Prazo
Pelo
modelo implementado, 85% da demanda prevista pelas distribuidoras deve ser
contratada diretamente, através de contratos bilaterais, hoje ainda dominados
pelos contratos a preço regulado (contratos iniciais), mas que progressivamente
deverão configurar operações efetivas de mercado.
Partindo-se
de uma situação inicial, em que a maior parte dos preços da geração do sistema
existente (a “energia velha”, incluindo a geração de Itaipu) permanece, pelo
menos temporariamente, regulada, pretende-se caminhar progressivamente até uma
situação de preços liberados.
São
esses contratos de longo prazo os sinalizadores e propulsores da expansão do
sistema. Com o elevado grau de incerteza (de mercado, hidrológica,
regulatória,...), é pouco provável que venham a ser realizados investimentos
significativos em usinas, voltados para a venda pelos preços de curto prazo (as
chamadas merchant plants), sem que
sua energia seja contratada a priori
Desse
modo, espera-se que os efeitos da concorrência sobre os preços da geração
dependerão principalmente das negociações contratuais. O predomínio dos contratos
a longo prazo na formação de preços torna estes bem menos voláteis que aqueles
dependentes de um mercado spot. A
contrapartida negativa dessa estabilidade é que esse processo reduz a ação
corretora da concorrência sobre os preços ao longo do tempo.
Como
a maior parte do sistema gerador brasileiro é, e ainda deverá permanecer por
muito tempo, predominantemente hidrelétrico, os preços contratuais poderão
depender fundamentalmente da necessidade de remuneração dos investimentos
iniciais e não de custos variáveis de insumos energéticos, comercializáveis no
mercado internacional, como tende a ser o caso em contratos de compra de
energia gerada por usinas térmicas.
Ainda
assim, alguma incerteza remanesce, já que negociações entre vendedores e
compradores, dependentes de ativos específicos, em que investimentos são
realizados para o atendimento de uma dada necessidade, geram, após a realização
desses investimentos, a possibilidade do exercício do oportunismo, em que uma
das duas partes pode tentar impor seus preços à outra[21],
independentemente dos valores contratados.
As
incertezas inerentes à relações contratuais são parte do preço a pagar e são
conseqüência da segmentação das atividades e viabilização da concorrência, já
que a única alternativa aos contratos seria permitir que as distribuidoras
pudessem deter a propriedade da geração por elas requerida.
Vale
destacar que as incertezas envolvidas nos contratos inevitavelmente são
transferidas para os preços, já que todo o risco adicional leva a um aumento do
custo de capital. Espera-se que os ganhos trazidos pela concorrência e pela
maior nitidez gerada pela separação das diversas etapas da cadeia de produção
compensem estas desvantagens.
Um
grau de compromisso que tem sido adotado é permitir a manutenção de algum grau
de verticalização, admitindo-se um percentual máximo tendendo a 30%, dentro de
determinadas qualificações[22],
do chamado self dealing, onde
empresas geradoras, controladas pelos mesmos acionistas que uma concessionária
de distribuição, vendem energia para esta última. Desse modo, facilita-se que
esses acionistas invistam também na geração para o atendimento ao mercado
consumidor.
Um
aspecto que merece aprofundamento é o nível necessário de segmentação para que
a concorrência efetivamente aconteça. É possível que o self dealing possa ter limitações muito menos severas que as hoje
previstas, com vantagens para a agilização de novos investimentos e, ainda
assim, viabilizar-se a concorrência. A própria possibilidade de consumidores
buscarem outros comercializadores, aliada à existência de um mercado mínimo, já
gera um efeito de contestabilidade, que é o essencial para que se tenha os
efeitos desejados sobre os preços finais.
Os Sinais para a Expansão e a Concorrência
Um
outro aspecto muito importante no novo desenho institucional, fortemente
interrelacionado com a implementação das regras de mercado e a viabilização da
concorrência, é o da expansão da geração. Até porque, se não houver oferta
suficiente, o poder de mercado dos geradores cresce e a concorrência
praticamente desaparece.
Essa
também é uma questão que requer abordagem particular específica, devido às
peculiaridades do sistema brasileiro, já que os projetos hidrelétricos são de
longa vida útil e muito intensivos em capital, com o grosso de suas despesas
feitas na fase de construção, e, portanto, com sua rentabilidade extremamente
sensível às taxas de juros, além de serem extremamente suscetíveis a
questionamentos ambientais, na etapa de construção.
Se
reconhecermos que, no mercado de juros, a ausência de gerações futuras gera uma
falha de mercado, e que o risco político-jurídico associado aos problemas
ambientais é de difícil gestão pelo setor privado, para muitos projetos, apenas
com algum tipo de equacionamento estatal e/ou o apoio de organismos
internacionais de desenvolvimento (taxas especiais de juros, mitigação de
riscos, etc.) pode-se levar esses empreendimentos a uma avaliação positiva do
mercado.
A
intervenção estatal, evidentemente, traz riscos significativos de oportunismo,
pois sua necessidade é de difícil mensuração, agravada pelo fato de que cada
aproveitamento hidrelétrico é diferente do outro, não se conseguindo
estabelecer regras gerais e ficando sempre a situação sujeita a elevado grau de
arbitrariedade. Mas, por outro lado, sem algum tipo de coordenação do processo
e apoio estatal pode-se vir a perder a possibilidade de um desenvolvimento
adequado de uma forma de geração, hoje ainda sem substituto nas dimensões
necessárias.
Também
algum nível de planejamento indicativo setorial, praticamente abandonado nesse
período de transição, se faz necessário, o que, pela sua interligação com toda
a política energética do país, requer uma intensa participação do Estado.
Os
problemas de uso do mercado como referência para a expansão não se restringem à
questão da opção hidrelétrica, principalmente em países que, como o Brasil, têm
sua demanda crescendo a níveis elevados e que requerem o estímulo correto e
tempestivo a um elevado volume de novos investimentos, face a intervalos muito
grandes de tempo entre as decisões de investimento e sua efetiva concretização
na oferta, além de uma forte rigidez nessas decisões.
Com
os horizontes de tempo aqui envolvidos, é inevitável que ocorram falhas no
papel coordenador do mercado. Assim, os sinais de mercado, mesmo os de mercados
futuros organizados, tendem a ser insuficientes para o balizamento do ajuste
entre oferta e demanda, sem que sejam secundados por um esforço integrado de
planejamento, coordenação e fomento.
Também,
entre as falhas de mercado, por exemplo, está o fato do custo de déficit ser
fundamentalmente uma externalidade para as empresas, o que faz com que, mesmo
com os mecanismos usados para sua incorporação nos preços spot, ainda assim,
dificilmente ele será capturado plenamente, afastando a solução ótima
empresarial do ótimo econômico.
Como
não existe metodologia capaz de determinar um número capaz de representar todas
as conseqüências de um déficit, é mais provável que a convergência de
interesses do regulador, em evitar fortes aumentos de tarifa, e das
distribuidoras, em não ter que pagar preços spot
muito elevados, prevaleça e que os valores usados tendam a ser inferiores aos
reais.
Esse
último problema é agravado numa fase de transição, em que os investimentos
garantidores da expansão da oferta mudam de mãos, pois o balanço entre os
custos de investimento ocioso (efetivamente pagos pelos investidores) e os
custos (externos) de déficit leva os agentes estatais e privados a diferentes
lógicas econômicas. Os agentes estatais tendem a investir antecipadamente, para
garantir o suprimento, enquanto que os investidores privados tendem a investir
com atraso, já que procuram acompanhar a demanda.
Se
observarmos que, nesse período de transição institucional brasileiro, três mudanças
significativas estão se dando em simultâneo, todas com conseqüências, pelo
menos no curto prazo, que dificultam a realização de novos investimentos, fica
evidente que todo o processo de mudança requeria e requer um esforço
significativo do governo, que pode ser direto e/ou indireto, para garantir a
continuidade da expansão.
Conforme
anteriormente apontado, os três principais eixos de mudança estão incluindo:
(1) a substituição de investidores estatais por privados, com sua mudança de
lógica econômica, (2) a mudança de modelo, com todo um conjunto de regras novas
ainda por definir, e (3) a mudança nos modelos de montagem financeira e na
natureza dos empreendimentos.
Não
é de se estranhar que, nesse contexto, tenham surgido dificuldades
significativas para a concretização de novas obras.
Regulamentação e desregulamentação dos preços da geração
Pelo
novo desenho institucional, os preços de geração estão liberados, excetuando-se
os da “energia velha”, que serão liberados gradualmente.
Na
ausência de um processo de competição direta no varejo, ao qual se poderá
chegar através de uma sucessiva ampliação das condições de liberação de
clientes cativos, a Aneel, com cobertura legal, instituiu preços limites – os
chamados valores normativos - até os quais as concessionárias podem repassar
para o consumidor os custos da energia por eles comprada para revenda.
Conforme
acima comentado, esse interferência é necessária enquanto todos os consumidores
não tiverem a possibilidade de escolher de que comercializador comprar, cada um
destes, por sua vez, competindo por contratos de compra com os produtores de
energia.
Deve-se
destacar, todavia, que, em vez de definir esses valores pelo valor marginal da
energia em cada região, a Aneel instituiu valores diferenciados por forma de
geração, instituindo subsídios implícitos a algumas delas, a serem pagos pelos
consumidores cativos. Além desse tipo de diferenciação de limites não se
justificar sob o ponto de vista econômico, eles correspondem, na verdade, a
definições de política energética e de distribuição de renda, que ultrapassam
de muito os limites de competência de um órgão regulador, devendo, se tivessem
que existir, estar suportados por legislação explícita.
Em
qualquer caso, o uso dos valores normativos, embora temporariamente
necessários, se transforma em uma manutenção da regulamentação para os clientes
cativos, neutralizando os sinais do mercado que se pretendia introduzir e
gerando toda a dificuldade usual da regulamentação em sua definição. Nesse
sentido, espera-se que a ampliação da concorrência continue sendo levada
progressivamente aos consumidores finais, de tal forma que se possa abrir mão
de seu uso.
No
imediato, dever-se-ia eliminar a diferenciação dos valores normativos e aprender com a experiência negativa nos
Estados Unidos, onde formas antieconômicas de geração se encastelaram de modo
semi-permanente na oferta, em função de políticas equivocadas de compra
obrigatória de eletricidade produzida a partir de formas renováveis, a preços
muito acima dos vigentes. Os subsídios
(e suas fontes) para formas de energia que se deseja impulsionar devem ser
discutidos e dados diretamente de forma clara, direta e transparente.
Uma
outra questão relevante, que merece reflexão, se liga à liberação da energia
velha para o mercado, prevista para se iniciar em 2003.
Aqui,
um ponto importante, que não tem tido a atenção adequada, é o fato de que, na
geração hidrelétrica, quando inteiramente liberada para o mercado, pode-se ter
uma forte formação de renda econômica, à medida que as usinas têm custos de
produção (basicamente formados pela remuneração do capital investido) bastante
diferentes, função mesmo de suas características físicas. A solução clássica
seria a captura desta remuneração excedente por taxas, porém estas não estão
previstas ex-ante.
Nas
usinas novas, esse problema fica resolvido com os leilões das concessões pelo
maior valor pago à União, o que, ao menos em tese, se houver efetiva
concorrência na licitação, transfere para o tesouro o valor presente do excesso
de renda que deverá ser gerada naquele empreendimento, comparando seus custos
com o preço (marginal) que a energia gerada deverá alcançar no mercado.
Na
definição dos preços da energia elétrica que precedeu os processos de
privatização, a tradicional maior participação do segmento geração nesses
preços foi suplantada pelas margens de distribuição, ou seja, enquanto que o
preço da energia elétrica ao consumidor final se recuperou , o mesmo não
aconteceu com o de geração, que hoje está por volta de metade do seu custo
marginal.
De
um certo modo, se transferiu renda para os governos estaduais, antigos
proprietários da maioria das empresas de distribuição privatizadas,
valorizando-se o fluxo de caixa esperado daquelas empresas, como estímulo ao processo
de privatização.
Com
as margens vigentes e com a expectativa de preservação do equilíbrio
economico-financeiro dos contratos, seja lá o que isto queira dizer, não se
pode mudar esta situação, a não ser
progressivamente, exigindo-se e partilhando-se ganhos de eficiência. Se
se passar a desrespeitar contratos, não só se afugentará todo e qualquer investidor, assim como se
fará com que aqueles que venham a investir no futuro usem em suas análise taxas
de desconto proibitivas, para compensar os crescentes riscos regulatórios.
Nas
circunstâncias, pode-se antever maiores dificuldades políticas para levar-se
rapidamente os preços da energia velha para os valores de mercado, mesmo em
nome de uma maior eficiência alocativa, em um ambiente culturalmente formado
dentro da regulamentação pelo custo do serviço. Com os preços da eletricidade
se elevando, será difícil alcançar os custos marginais para a geração (em torno
de US$ 35-40 / MWh, segundo diversas fontes e estudos realizados no âmbito da
Secretaria de Energia do MME), antes que se consiga partilhar ganhos
expressivos de produtividade na distribuição nos processos de revisão
tarifária.
Como
a Gerasul foi privatizada com esta expectativa, é lícito supor que a sua
energia será liberada para o mercado dentro do cronograma estabelecido pela
legislação vigente. Já no caso da geração das demais empresas estatais,
particularmente as do Sistema Eletrobrás, caso se mantenham os níveis de preços
atuais, haverá pressões para se prolongar o período de transição, liberando sua
energia para o mercado livre mais lentamente.
Na
verdade, a melhor solução para esses
conflitos, com a manutenção das regras atuais, poderia estar, frente às
dificuldades que serão enfrentadas para a expansão dos grandes projetos
hidrelétricos, no aproveitamento desse potencial de geração de renda excedente,
orientando-o diretamente para o programa de expansão.
Entendendo
que essa renda está associada a vantagens naturais, de propriedade de toda a
sociedade, de hoje e de amanhã, é lícito o seu re-investimento a uma taxa
social de desconto, que valorize o
futuro mais remoto, levando em conta o interesse das gerações futuras, ausentes
do mecanismo de mercado, e que possibilite um custo de capital atrativo para
esses projetos para os demais investidores.
Note-se
que estes recursos tanto podem ser obtidos a partir das margens que seriam
geradas por estas empresas, com a energia vendida a preços competitivos, como
através de parcela dos valores obtidos antecipadamente, caso estas empresas
sejam privatizadas com base em preços que incluam a expectativa futura dessa
geração de renda econômica. Em ambos os casos, se estaria canalizando essa
renda para benefício dos consumidores em geral, desde que sua destinação fosse
explicitamente assinalada por lei. Deve-se ressaltar que, pela natureza dos
conflitos de interesses envolvidos, acredita-se que o tema ultrapasse a esfera
do executivo e do regulador e deva ser definido em legislação própria.
A Competição pelos Grandes Consumidores na Fase de Transição da Reforma
Institucional no Brasil
Estudos
mais detalhados, desenvolvidos por Araujo (2001), confirmam o que se poderia
pressupor, face ao baixo custo atual da geração, que o espaço para efetiva
competição pelos consumidores potencialmente livres atuais praticamente não
existe, já que, com os preços cobrados pelas concessionárias ancorados nos
contratos iniciais, muito dificilmente se terá alternativas competitivas
capazes de atrair esses consumidores para outros supridores.
Pelo
contrario, o que mostra Araujo é que, em alguns casos, as margens atuais podem
chegar, no limite, a valores negativos e, em diversas situações, menores que os
pedágios que as empresas receberiam pelo mero uso de sua rede. Este é,
principalmente, o caso de consumidores ligados em tensões mais elevadas,
capazes de otimizar o seu consumo, operando com elevados fatores de carga e, ao
mesmo tempo, modulando o mesmo o mais possível, operando mais nos períodos fora
da ponta.
Um
caso de transferência de consumidor, que tem sido bastante noticiado, envolveu
a Carbocloro, que deixou de comprar da Bandeirantes e passou a ser suprida pela
Copel. Este fato não deve, na verdade, ter provocado maiores prejuízos à
Bandeirantes, podendo mesmo ter sido muito lucrativo para esta última, se ela
não tiver reduzido seus contratos de compra originais, face aos elevados preços
atuais no spot, no contexto de
racionamento.
Um
ponto que chama a atenção no trabalho de Araujo é que os primeiros valores
estabelecidos para o pedágio a ser pago às concessionárias pelos serviços
puramente de distribuição, em Novembro de 1999, ao menos no caso da Light, eram
muito inferiores às margens da empresa em geral, deixando uma margem implícita
para comercialização extremamente elevada e absolutamente irrealista.
Quando
se estiver na efetiva iminência de um processo competitivo, espera-se que os
chamados “encargos de distribuição” (pedágio) sejam devidamente ajustados, para
tornar neutra, desse ponto de vista, a manutenção dos contratos de compra pelos
consumidores finais com a concessionária local, em relação à contratação
alternativa com as comercializadoras que estiverem competindo na região.
A
análise caso a caso das possibilidades de competição mostra, também, que, em
determinada medida, ela pode provocar um fenômeno de seleção adversa em relação
aos contratos com as concessionárias, que requer estudos mais aprofundados. As
regras tarifárias atuais procuram estimular o consumo fora dos horários de
ponta, pressupondo que para as empresas esse consumo pode ser antieconômico,
por exigir investimentos adicionais . Isto, entretanto, é feito levando-se em
conta uma hora de ponta média. Ora, para determinadas concentrações de
consumidores, ligados a alimentadores específicos, esses trechos da rede podem
ter sua “ponta” efetivamente deslocada, por força dos estímulos tarifários,
exatamente para os períodos de tempo em que a margem tarifária para a
distribuição é mais baixa, causando até mesmo eventual prejuízo para a
concessionária. Com a concorrência, são exatamente estes consumidores, que
otimizam suas tarifas, que terão maior tendência a permanecer atendidos pela
concessionária local.
A
questão da heterogeneidade dos consumidores, cobrados por preços médios, com
inevitáveis subsídios cruzados, certamente só será melhor equacionada se e
quando os custos de medição e
comunicação caírem ao ponto de tornarem viável o estabelecimento de preços
individualizados, o que poderá se acelerar se a competição no varejo
efetivamente se viabilizar.
Na
verdade, as dificuldades para a implantação de uma efetiva concorrência junto
aos consumidores finais existem, mesmo em outros países onde a competição está
mais avançada, mesmo com os preços de geração mais homogêneos. Pelo menos nos
Estados Unidos, segundo Joskow (2000b), os comercializadores que tentam atrair
os consumidores livres, mesmo lá, têm tido muita dificuldade de competir
lucrativamente com a oferta padrão da distribuidora local.
Nesse
contexto, fica para os comercializadores o espaço dinâmico e mais elaborado de
provisão de serviços elétricos, incluindo medições especiais, hedges financeiros contra preços,
serviços de energia diretos, outros produtos complementares, etc., abrindo
possibilidades para que o resultado final desse processo possa vir a ser uma
grande aceleração na mudança dos fundamentos do negócio e, quem sabe, na
expansão mais acelerada da geração distribuída.
6. Conclusões
O
setor elétrico brasileiro foi alcançado pelo movimento geral de mudanças
estruturais e de ampliação dos espaços de concorrência em suas atividades. Ao
contrário, porém, de alguns exemplos internacionais paradigmáticos, aqui não se
tinha como estímulo às mudanças a vigência de altos preços da eletricidade, em
particular da geração, que gerassem um maior interesse imediato por parte dos
consumidores.
No
Brasil, as motivações para mudança foram mais endógenas, onde as próprias
empresas concessionárias buscavam regras tarifárias estáveis que permitissem ao
setor um funcionamento mais organizado.
Apesar
de todos os custos indiretos gerados para a sociedade pela desorganização
financeira setorial e das pressões sobre a dívida pública, no sistema de
regulamentação de serviço pelo custo, em um ambiente empresarial monopolista e
estatal, os investimentos na expansão da geração continuavam a ser feitos e o
atendimento aos consumidores, mesmo a preços irrealisticamente contidos, não
vinha sofrendo nenhuma solução de continuidade.
Essa
diferença fez com que as vantagens de uma reformulação não tenham sido tão
aparentes para a sociedade em geral e é, possivelmente, um dos fatores
explicativos mais significativos para o fato das mudanças institucionais do
setor elétrico brasileiro terem se realizado um pouco por espasmos, em
diferentes diplomas legais, sem um debate amplo e abrangente.
É
certamente difícil se promover uma restruturação que, mesmo eliminando custos
para o tesouro nacional e para os contribuintes como um todo, não reduza, e,
pelo contrário, possa vir a trazer aumentos tarifários diretos visíveis aos
consumidores.
O
processo de transformações envolveu, em simultâneo, a privatização de empresas
estatais federais e estaduais e a reformulação do modelo institucional. Sua evolução institucional foi precipitada
pelas Leis das Concessões, que impuseram um corte radical com o sistema de
custo do serviço, antes vigente.
Balizada
pelos estudos da Coopers & Lybrand, mas sem o debate necessário com todos
os agentes setoriais, legislação posterior traçou seus principias elementos,
tendo algumas questões importantes ficado pendentes de definição legislativa
apropriada, num segmento em que externalidades e outras falhas de mercado
necessitam ser cuidadosamente levadas em conta pelos mecanismos institucionais.
Entre
as pendências estão as regras de revisão dos preços e a definição de fontes de
recursos adicionais e instrumentos para a promoção adequada da expansão
hidrelétrica. Também o processo de condução efetiva da concorrência pelas
fontes de geração até os consumidores finais não ficou devidamente estruturado.
No
setor elétrico, as vantagens do monopólio natural de suas redes requerem a
intervenção do regulador para que as mesma sejam partilhadas pelos
consumidores, com todas as dificuldades inerentes à regulamentação, entre elas
os fenômenos de não observabilidade da coisa regulada, de assimetria de informação
entre o regulador e as empresas, e as dificuldades de representatividade do
interesse da sociedade pelo regulador.
A
concorrência, onde possível, mesmo que limitada, reduz as inevitáveis falhas da
regulamentação. Qualquer retrocesso na tentativa de introdução de elementos de
mercado no setor elétrico brasileiro, devido às dificuldades inevitáveis, sem
se levá-la adiante o suficiente de modo a ajustá-la à realidade desse setor,
estará provocando um recrudescimento do arbítrio regulatório e seus problemas.
Quanto mais for possível deixar-se que a concorrência por si mesma venha a
gerar parcelas do preço final, menores serão os riscos de distorções.
A
introdução da concorrência nesse setor ainda é muito incipiente, e sua
efetivação requer um trabalho continuado, que não pode ser interrompido por
interpretações errôneas das dificuldades setoriais presentes. A predominância
de contratos bilaterais faz com que esse processo seja menos volátil do que se
estivesse centrado em um mercado spot.
A adoção complementar de preços regulados no mercado atacadista de curto prazo,
apoiados no valor marginal da energia, parece ser uma solução adequada.
Para
que, todavia, se alcance níveis efetivos de concorrência no mercado de
contratos, será necessário levar essa competição, por meio de estruturas com
governança corporativa adequada, até o consumidor final, eliminando-se a
necessidade de valores normativos. Estes, aliás, enquanto necessários, não
deveriam ser diferenciados por forma de energia, e, caso o fossem, por algum
consenso da sociedade, sua estrutura de valores relativos não poderia nunca ser
de competência do regulador e sim de política energética.
A
experiência de concorrência junto aos consumidores finais, mesmo os de grande
porte, na verdade, não foi nem mesmo iniciada.
Enquanto estiverem vigendo os contratos
iniciais, agravados por uma estrutura de preços claramente favorável aos
grandes consumidores, a disputa por consumidores livres se restringirá a casos isolados, sem maiores impactos.
O
ajuste dos preços relativos e, principalmente, o ajuste dos valores dos
pedágios, tornando neutra a atividade de distribuição, são condições essenciais
para o novo sistema a se instalar. A combinação de preços regulados e de
mercado é uma das maiores dificuldades a ser permanentemente trabalhada, já
que, com quadro regulado inadequado, também o serão os efeitos da competição
que se consiga implementar.
Com
a efetivação de um verdadeiro ambiente competitivo, como a concorrência não se
dá apenas a nível de preços, mas também nas dimensões de qualidade e de inovação[23],
espera-se que nessas últimas a atividade competitiva dos comercializadores seja
introdutora mais acelerada de novos e melhores serviços para os consumidores, o
que pode ser uma de suas mais saudáveis conseqüências no caso brasileiro.
Em
todo esse processo de mudanças, a dimensão mais preocupante sempre foi e
continua sendo a questão da expansão, até porque sem oferta não se tem como se
falar em concorrência.
Ora,
como foi comentado, a implementação simultânea de três mudanças significativas,
de modelo, de mudança de propriedade e de introdução de novas tecnologias de
geração, financiada por novos modelos, inevitavelmente gera riscos de
descontinuidade na expansão. Principalmente, quando a lógica econômica dos
novos agentes é diferente, e mais
avessa ao risco, que a dos agentes anteriores.
Para
o equacionamento desse problema, face a taxas elevadas de crescimento da
demanda, ou se permite a retomada dos investimentos diretos estatais, ou se
criam condições para os investimentos privados, ou, ainda, se busca, ao menos
na transição, uma combinação dessas alternativas.
A
menos que só se queira investir apenas recursos públicos, para que os
investidores privados efetivamente assumam os projetos de geração de
eletricidade de grande porte e longa maturação, é necessário todo um trabalho
institucional, incluindo a recuperação (e não a destruição) de um sistema de
planejamento e fomento estatal, capaz de atuar na correção das falhas de
mercado e de criação das condições de confiança e de administração de riscos.
Entre
as ações garantidoras da expansão, é fundamental que se canalizem para o apoio
à implementação dos grandes projetos de geração, provavelmente em sua maior
parte hidrelétricos, os recursos excedentes que poderão ser obtidos pela
liberação para o mercado competitivo das parcelas de energia gerada, hoje ainda
sobre o controle do Estado e comercializadas com preços regulados, sob os
contratos iniciais.
Nas
últimas décadas, recursos que eram orientados para a expansão do setor têm sido
progressivamente destinados para outras finalidades, como ocorreu, por exemplo,
com o imposto único e, mais recentemente, com parte significativa do fluxo de
pagamentos oriundos da usina de Itaipu.
Se
esse processo não for revertido e poupanças institucionais não forem orientadas
para o setor elétrico, é pouco provável que gestores privados, responsáveis
pela geração de valor para seus investidores, face às demais alternativas de
investimento hoje disponíveis no mercado financeiro de baixo risco e elevada
rentabilidade, na ausência de mecanismos bem estruturados de articulação e
apoio e na ausência de um quadro regulatório estável e confiável, venham a
assumir participação significativa em projetos de usinas de grande porte, nas
dimensões requeridas pelas pressões da demanda.
Referências
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[1] A questão da
verticalização, vide Milgrom e Roberts (1992) e Joskow (1993), é uma questão estratégica complexa em
inúmeras indústrias e diversos setores, que, em contraste com o que está
acontecendo no setor elétrico, têm sido mantidos verticalizados, como é o caso
do setor petróleo.
[2] Conforme
Joskow (2000b), pg. 41, “The stimulus
for more fundamental industry structure, regulatory and competition reform came
from California and a small set of pioneer states with relatively high
electricity costs (and associated strandable costs) and a substancial QF / IPP
presence”. Ainda segundo Joskow, os preços da geração nas regiões mais caras
dos Estados Unidos, antes das reformas, estavam entre US$ 60 e US$ 70 / MWh,
enquanto que o preço competitivo médio em 2000, com as novas unidades a gás
natural, estava na faixa de US$ 25 a US$ 35 / MWh.
[3] Em relação a
cuja dificuldade tem se aplicado a expressão inglesa “Not in my backyard”, ou
seja, atitude típica de um “jogo” em que alguns atores querem “ficar com todos
os benefícios e deixar os prejuízos para os demais”.
[4] Vide, por
exemplo, Milgrom e Roberts (1992)
[5] Para uma
discussão do papel da regulamentação no setor elétrico veja-se Kahn (1987) e
Newbery (2000); para a importância dos aspectos institucionais na eficiência do
sistema produtivo, veja-se North (1990)
[6] Os problemas
de conflitos de interesse são similares aos identificados nas relações entre
acionistas e administradores de empresas, em que um indivíduo (agente) age em
nome de outros(s) (principal), e são conhecidos como custos de agência. Vide,
por exemplo, Fama e Jensen (1983).
[7] Deve-se
observar que não estão ainda muito claras as fronteiras entre as atividades de
comercialização e as de distribuição propriamente ditas. Por exemplo,
recentemente, Ofgem, o novo órgão regulador inglês para gás natural e
eletricidade, transferiu os custos de medição para a atividade de
comercialização, embora conservado os
custos dos ativos de medição como parte dos custos de distribuição, segundo
Littlechild (2000)
[8] No que se
refere ao segmento de comercialização propriamente dito, Joskow (2000a) aponta
que a competição que nele se formar deverá estar menos ligada aos seus custos
diretos e mais ao conjunto de serviços adicionais que poderão ser agregados por
eles; nesse sentido as firmas que atuarem nesse segmento tendem a ser
importantes vetores de mudança e de introdução de novas tecnologias de medição,
comercialização e uso da energia
[9] Este seria,
na verdade, um efetivo instrumento de governança, deixando o direito de decisão
de compra nas mãos de quem é realmente afetado pela mesma; vale lembrar, porém,
que a flexibilidade de escolha dos consumidores terá o desafio de ter que ser,
em ultima análise, compatibilizada com a rigidez dos investimentos em geração
e, por extensão, dos contratos.
[10] Como foi o
caso da Pacific Gas & Electricity (PG&E) na Califórnia.
[11] Uma discussão
detalhada das dificuldades do processo de regulamentação pode ser vista em Kanh
(1987)
[12]
Usinas anteriormente consideradas competitivas e posteriormente superadas de
muito pelas novas unidades.
[13] Na Califórnia, em simultâneo à mudança de modelo, passou a ser cobrada uma taxa adicional na tarifa, para todos os consumidores, para compensar os investimentos realizados em usinas não competitivas
[14] Como indicava
o processo do “Revise – Revisão Institucional do Setor Elétrico”, vide Comitê
Executivo do Revise (1989)
[15] Pela edição
da Lei 8631/93, conhecida como Lei Eliseu Resende, que alterou a legislação
tarifária e promoveu o equilíbrio econômico-financeiro do setor, logo seguida
pelos primeiros trabalhos de preparação de processo de privatização, conduzidos
pelo BNDES.
[16] Sobre a
evolução histórica do setor elétrico brasileiro vide Lima (1995) e Medeiros
(1993)
[17] Noel Rosa já
nos lembrava que “... o cinema falado foi o grande culpado da transformação”.
[18] Veja-se a
mobilização que deu origem ao Revise.
[19] Pela lei
9.427/96 , cuja elaboração também antecedeu a conclusão do próprio estudo da
Coopers&Lybrand
[20] Assegurada
segundo determinada probabilidade de déficit pré-estabelecida; o sistema
brasileiro, enquanto estatal, historicamente vinha tendo seu planejamento
referido à aceitação de um risco máximo de 5%
[21] A essa
tendência ao oportunismo nas relações contratuais se associa o fato da
impossibilidade dos contratos preverem todas as situações possíveis, deixando
sempre margem para algum tipo de discussão; na verdade, toda a discussão que
hoje se dá, entre geradoras e distribuidoras, em torno do Anexo V dos Contratos
Iniciais, em situação de racionamento, não deixa de ser exemplo de conflito que
nasce quando relações verticais são substituídas por contratos
[22] A Resolução
278 de 19.07.00 da Aneel limita o self dealing a 30%, porém excluí desse
percentual a energia velha dos contratos iniciais, assim como o de usinas
entrando nos anos de 2001 e 2002.
[23] Sobre outras
dimensões da concorrência e sua intensidade, veja-se Demsetz (1995).